1 de jul. de 2010

O telefone que toca

Detesto telefone que toca tarde da noite. Desde pequena relaciono isso com notícia ruim. Quando meu pai faleceu, não morávamos com ele. O telefone tocou de noite. Eu dormia na sala e quando minha mãe atendeu, deram a notícia. O mundo parou por instantes. Acabou. Uma pessoa tinha ido embora, assim, sem mais nem menos. E avisaram pelo telefone.
Ontem à noite, o telefone tocou de noite. Era tarde. Um vizinho da casa onde passei a maior parte da minha vida havia falecido. A casa deles é colada na casa onde minha mãe mora até hoje. Sem mais nem menos ele se foi. Depois que a gente cresce e muda da casa dos pais, os vizinhos vão ficando longe da memória. Nas visitas que fazemos vez ou outra, eles sorriem e acenam do portão. Nos viram crescer. Assistiram às nossas artes e às nossas conquistas. De repente, o telefonema à noite. Acabou. Mais uma pessoa foi embora.
Há anos associo telefonemas à noite a notícia ruim. Por princípio, eu não ligo para ninguém depois de certo horário. Uma vez sofri um acidente de carro e só avisei as pessoas no dia seguinte, quando já estava tudo bem. Não queria angustiar a noite de ninguém.
Mas houve um tempo em que quando o telefone tocava à noite, por volta das 22h, meu coração pulava de alegria. Era o homem que eu amava, ligando do outro lado do mundo para conversar horas comigo. Ao ouvir a voz tão familiar, a alegria tomava conta de mim. Não me passava pela cabeça que aquele telefonema à noite pudesse ser coisa ruim. Eram alegrias, promessas, palavras de amor. O medo do telefone à noite desapareceu por algum tempo. Após o enlevo, veio o abandono. Não mais palavras de amor adentrando a madrugada. O telefone mudo. A dor, a tristeza e o choro. O tempo veio, cicatrizou a ferida.
O mesmo telefone que quando tocava à noite me fazia pensar que havia algum problema, quando se calou na noite do abandono me fez sentir sua falta. Um único fato, tantos sentimentos. Somos capazes de alterar o significado de muitas coisas ao longo de nossa vida. O medo de dirigir pode transformar-se em verdadeira paixão por estrada. A tímida adolescente pode transformar-se numa profissional corajosa. A menina gorda se torna uma quase atleta. O poder da mudança está aqui, dentro de cada um.
Mas infelizmente, quando o telefone tocou ontem à noite para avisar sobre a morte do vizinho, muitas lembranças vieram à mente. Lembranças de que as pessoas entram e saem de nossas vidas. Lembranças de que somos transitórios. Lembranças de um tempo bom em que a gente era criança e as maiores preocupações eram a lição de casa e o quarto arrumado. É triste quando alguém se vai. É triste quando a gente fica e junto com a gente um vazio. Vai ser triste chegar em casa e não receber mais o aceno no portão, mesmo que de longe. É triste pensar que somos apenas passageiros. Por isso, a jornada precisa valer a pena.

Escrevi pensando no seu Jessé Ulhoa, vizinho da minha mãe por mais de 30 anos, que faleceu ontem. Pai, esposo e avô. Um homem calmo, sereno, amigo da minha mãe. Fique em paz!

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